PAÍS
É nesta parte que começa então a esquizofrénica encenação do “naufrágio no mar”, um simulacro de um naufrágio que nunca existiu, montado em conjunto, e sob a direcção da trapaceira Autoridade Marítima Nacional, pela Estação Salva-vidas do Instituto de Socorros a Náufragos de Sesimbra e do comando-local da Polícia Marítima de Setúbal, para limpar a imagem do crime de abandono em que se tinham enterrado até aos gorgomilos os cobardes e incompetentes estação salva-vidas do Instituto de Socorros a Náufragos e o comando-local da Polícia Marítima, ambos da Figueira da Foz.
A decisão de montar a encenação deste simulacro de naufrágio deve-se ao Chefe do estado-maior da Armada, isto é, ao Almirante Autoridade Marítima Nacional, Macieira Fragoso.
E a ordem para esta aldrabice foi dada às 10H00 da manhã do dia 23 de Outubro, o momento em que já tinha sido publicado o comunicado com o título “Novo Naufrágio no mar, salvos 14 pescadores em Sesimbra – actualização de informação”, e alguém mandou publicar, à mesma hora, o segundo comunicado, incensando a estação salva-vidas de Sesimbra e a Polícia Marítima de Setúbal: “Estação Salva-vidas e Polícia Marítima efectuaram salvamento esta noite em Sesimbra”.
Os primeiros socorros chegaram 40 minutos depois do alerta, com ordens peremptórias do capitão do proto de Setúbal, conforme nos contou o Mestre Manuel Piscaia: “vestir imediatamente os coletes, abandonar a traineira e passar para a balsa”.
Ora, os pescadores não corriam qualquer espécie de perigo e só pensavam em salvar a traineira do encalhe, para não perderem os seus meios e instrumentos de produção.
Os pescadores queriam um rebocador para levar a traineira para o porto de Sesimbra; não queriam mais nada, porque não corriam risco nenhum. Os 14 pescadores só abandonaram a sua embarcação por ordem do capitão do porto, e só envergaram os coletes, porque o capitão do porto dera ordens peremptórias para o caso. Os pescadores ficaram tão estupefactos com aquelas ordens estúpidas que nem atinavam com os lugares dos coletes, e foi um pescador que teve de vestir o colete ao mestre Manuel Piscaia, que ficou um pouco desnorteado com a hipótese de perder a traineira, perante as ordens malucas do capitão do porto.
Os pescadores não foram salvos, pela simples razão de que nunca estiveram em perigo. Os pescadores viram-se aliás naquela situação tragi-cómica da velhinha que é obrigada a travessar a rua à força, para que o escoteiro cumpra a sua boa acção daquele dia.
O próprio mestre Manuel Piscaia teve ocasião de explicar pacientemente aos seus esquizofrénicos salvadores que a tripulação preferia ficar toda a bordo da traineira à espera do rebocador, pois achavam-se em absoluta segurança. Os 14 pescadores só abandonaram a embarcação após repetidas ordens do capitão do porto de Setúbal, o capitão-de-fragata Luís Daniel Corona Jimenez.
Os meios materiais e humanos mobilizados para a encenação do simulacro do naufrágio pelo capitão do porto de Setúbal foram faustosos e espampanantes, em provocatório contraste com a total ausência de meios que se verificou no naufrágio real e dramático do Olívia Ribau na Figueira.
Com efeito, concentraram-se no mar da Praia dos Penedos uma embarcação da estação salva-vidas da delegação marítima de Sesimbra, duas outras embarcações da polícia marítima de Setúbal, a lancha Escorpião da Marinha, o patrulha oceânico NRP Figueira da Foz e o helicóptero da esquadra EH-101 da Força Aérea Portuguesa, estacionada no Montijo.
Um fartote de meios e um desbarato de dinheiros públicos para um naufrágio que nunca existiu… Só para limpar o esterco em que a Autoridade Marítima Nacional e os seus oficiais da Marinha se entulharam na barra da Figueira da Foz.
E, no porto de Sesimbra, encontrava-se uma nutrida equipa da Emergência Médica, com quatro ambulâncias, para receber náufragos que, felizmente, nunca naufragaram e onde ninguém estava ferido ou doente.
Mestre Piscaia foi metido quase à força numa das ambulâncias e despachado para o Hospital São Bernardo, em Setúbal, onde até tinha um genro médico de serviço, porque alguém, na faustosa equipa médica que o esperava no porto de Sesimbra, lhe detectou um quadro clínico de ansiedade. Pudera!
Mestre Piscaia estava bom do seu quadro ansioso no mesmo dia, duas horas depois do internamento, e correu para Sesimbra onde, conjuntamente com o presidente Ricardo Santos da armadora Sesibal, foram proceder à recuperação da traineira Segredos do Mar, então já varada para ligeira reparação.
Examinámos a traineira por fora e por dentro, na companhia dos operários que procediam aos consertos e, como se poderá ver pelas nossas próprias fotografias aqui publicadas, a traineira Segredos do Mar não naufragou: teve um ligeiro encalhe, em águas mansas, onde as pedras roladas da Praia dos Penedos terão desmantelado parcialmente o costão de bombordo e partido o emissor-receptor da sonda.
Essa encenação de um naufrágio, que nunca houve, em Sesimbra, para montar um simulacro da actuação da Autoridade Marítima Nacional e convencer o país que aquela autoridade é eficiente e que os pescadores e todos os homens do mar poderão confiar na capacidade da instituição para socorro dos naufragados, corresponde à chamada guerra psicológica que já não se via desde os infaustos tempos da guerra colonial.
O chefe do estado-maior da Armada deve pedir imediatamente desculpa ao país pela sua responsabilidade política, civil e criminal na morte, que foi um verdadeiro homicídio por abandono, dos cinco pescadores do arrastão Olívia Ribau na barra da Figueira da Foz.
E deve declarar-se pronto a que a Autoridade Marítima Nacional pague às famílias dos pescadores mortos por abandono as indemnizações que lhes são devidas.