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INTERNACIONAL

A crueldade é um lamentável efeito secundário

"We came, we saw, he died", disse a antiga Secretária de Estado de Barack Obama, Hilary Clinton, em 2011, quando Muhammar Gaddafi foi assassinado por revolucionários da chamada Primavera Árabe, em plena luz do dia. Enquanto a Líbia degenerava num Estado-fantoche dos poderes imperialistas ocidentais e se tornava num centro mundial para o tráfico de seres humanos, os representantes do partido que reclama defender a vida e a dignidade do homem comum aplaudiam a morte de um chefe de Estado estrangeiro com uma barra de ferro. Este triunfalismo e militarismo norte-americano continua em 2020, com a reeleição de Joe Biden para presidente dos Estados Unidos da América.

O Partido Democrata festeja a nomeação de Kamala Harris, a primeira vice-presidente afro-americana, e espera que as mulheres e crianças no Iémen e na Síria aplaudam o facto de, por uma vez, estarem a ser bombardeadas por armas vendidas por uma potência representada por uma mulher negra. Entretanto, se ao longo do ano o fracasso da campanha de Bernie Sanders nas primárias do Partido Democrata demonstrou a impotência do identitarianismo progressista na oposição ao autoritarismo de direita, a rejeição de Alexandra Ocasio-Cortez para a Comissão de Energia – uma posição para a qual a própria assumia estar garantida – demonstra os limites da política de frente unida em fazer impor qualquer espécie de “política progressista” que vise melhorar as condições materiais das classes trabalhadoras. Nesta linha, o novo governo democrata vai rejeitar qualquer proposta de construção de uma rede de saúde pública e já se aliou aos republicanos para desfazer qualquer esperança de aumento de auxílio monetário específico à massa crescente dos desempregados vulneráveis à degradação das condições económicas e escamotear os planos para implementar o 'Green New Deal'. A propósito, vamos assistir agora ao inédito de um governo de coligação num país com um sistema bipartidário, já que Biden vai ter que negociar qualquer legislação com o Senado onde os republicanos liderados por Mitch McConnell, embora em minoria, detêm força suficiente para boicotar determinado tipo de leis. A frase de Julius Nyerere, que em resposta a críticas quanto à ausência de pluralidade “democrática” em países governados por comunistas terá respondido que “os Estados Unidos também têm um sistema de partido único, mas, em típica extravagância americana, têm dois partidos”, finalmente vai provar-se verdade. O resultado, os Estados Unidos passaram de um governo que encarava a crueldade para com os mais fracos como um factor essencial de construção de identidade, para um governo que acha que a crueldade e a miséria são apenas lamentáveis efeitos colaterais inerentes à exploração económica dos trabalhadores de todo o mundo.

Se durante o mandato misericordiosamente curto de Donald Trump, o imperialismo praticado pelo grande capital se virou para dentro, para as grandes massas de trabalhadores precários e racializados que a herança colonial dos Estados Unidos deixou para trás, e para os governos subalternos da América do Sul, votados pela proximidade geográfica ao jugo da superpotência e antigo pasto dos resquícios do jingoísmo do governo de Ronald Reagan, será com alguma confiança que poderemos afirmar que durante o termo de Joe Biden na presidência vamos assistir a uma nova expansão imperial para o exterior da esfera de influência directa dos Estados Unidos. Isto a julgar pelo que ocorreu durante os dois mandatos de Barack Obama, em que a sanha democratizadora do neoliberalismo americano conduziu à desestabilização da Síria e da Líbia – com efeitos trágicos para ambos os países – à eleição do sanguinário governo de Fatah al-Sisi no Egipto e à afirmação do neonazismo enquanto força de poder na Europa de Leste, este último acirrado também pela Alemanha, que instrumentalizou a NATO para prosseguir no afrontamento à Rússia e para aumentar a exploração da força de trabalho na Europa de Leste.

De facto, assistimos à nomeação de Antony Blinken para Secretário de Estado, que foi o arquitecto das guerras que agora assolam a Síria, a Líbia e o Iémen, e que vai dirigir a política internacional americana pelos próximos anos. Será de notar também que Blinken é um dos fundadores da WestExec, empresa que celebrou contratos de defesa multimilionários em nome do Estado americano com Israel, e cujos tentáculos se espalham por vários departamentos do gabinete de Joe Biden. Janet Yellen, que implementou a política de 'quantitative easing' responsável pela transferência de milhões de milhões de dólares dos estados de todo o mundo para a elite económica internacional desde rescaldo do 'crash' de 2008 até aos dias de hoje, foi nomeada Primeira Secretária do Tesouro.

Enquanto os 'media' corporativos norte-americanos e o 'establishment' das elites burguesas da costa-leste dos Estados Unidos festejam o governo “mais diverso da história”, esta coligação arco-íris prepara-se para acelerar a extracção de riqueza do hemisfério Sul. No plano doméstico os Estados Unidos lidam com 600 mil mortes devido ao Covid 19 e com a ausência completa de um plano de resgate social para os milhões de desempregados que virão quando os efeitos da retracção económica causada pela pandemia se adensarem nos próximos meses e anos. Enquanto a elite financeira da maior potência mundial se auto-congratula pela vitória do liberalismo identitário face ao cripto-fascismo de Donald Trump (ignorando que este praticava apenas uma variedade diferente de liberalismo identitário dirigida ao homem branco da aristocracia laboral americana), continuará a ser a classe operária internacional que pagará os custos da desigualdade económica, do colapso ambiental e do agravamento da pandemia de Covid 19 dentro das cidades, dos empregos e das comunidades onde trabalham e habitam os oprimidos, explorados e desfavorecidos.

Os servos de Wall Street e do imperialismo são assim recompensados pela sua devoção, num jogo das cadeiras que visa apenas uma redistribuição dos espólios da exploração capitalista. A maquinaria do império continuará a ser alimentada a morte tal como uma locomotiva é alimentada a carvão, e serão os trabalhadores de todo o mundo que fornecerão o combustível. É assim dever de qualquer programa político minimamente sério estabelecer a mais determinada oposição aos que usam a cor da pele, a identificação de género ou a orientação sexual para se identificarem com aqueles com quem não partilham absolutamente nenhum interesse de classe, com aqueles que sofrem os maiores efeitos dos choques que assolam as sociedades ocidentais, com os povos historicamente subjugados pelo colonialismo e a exploração, e com aqueles que não se podem retirar para as suas casa de campo para fugirem à propagação da pandemia. A gerontocracia americana (a pequena-burguesia e a aristocracia laboral que representam historicamente a grande massa de eleitores enfranchisados nas eleições americanas) dividiu o voto entre a presidência de Biden e a minoria republicana no Senado precisamente para fazer avançar os seus próprios interesses de classe, enquanto ignora ou perpetua a violência perpetrada pelo império, e será a tarefa de qualquer projecto comunista votar esta gente ao caixote do lixo da história.

A. E.

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